Autor: Professor Manuel Diogo Cordeiro
É incontornável começar este texto com uma alusão a Mileto, nome da antiga cidade-estado Grega localizada na costa ocidental da península da Anatólia, atual Turquia. Muitos séculos antes de Cristo, esta zona era o eixo central entre o Oriente e o Ocidente, onde confluíam rotas comerciais, marítimas e terrestres, que originaram riqueza, mas também confrontos culturais. Aqui emergiu uma sociedade cosmopolita que fervilhava de atividade económica, política, artística, cultural e científica.
Neste âmbito, poderemos falar da primeira revolução científica. Todas as civilizações humanas conceberam o mundo com a Terra e, por cima, o céu. Na verdade, quando estamos num espaço aberto e olhamos para cima, vemos o céu, facto que aparentemente confirma esta interpretação.
Durante séculos, para sustentar esta teoria e garantir que a Terra não viria a cair, a explicação variou entre as seguintes: debaixo de nós havia ou terra até ao infinito, ou uma grande tartaruga, ou enormes colunas a suportar uma trave, ou um ser com força sobre-humana a suportar a Terra. Assim pensaram Sumérios, Egípcios, Maias, Incas, Chineses, Africanos, Hebreus, Índios, etc. A única exceção foram os Gregos antigos. Para eles, a Terra era uma pedra suspensa no espaço.
Mas afinal quem abriu o caminho e iniciou o processo de repensar a nossa imagem do mundo? Quem é que, pela sua capacidade crítica, pela sua resistência e rebeldia, se propôs reinventar o Mundo e divulgar uma ideia tão revolucionária?
O seu apelido, Mileto, é, como anteriormente referido, o nome de um dos locais mais efervescentes e prolíficos da Humanidade e o seu nome é Anaximandro (610-546 a.C.), a quem apenas bastava esta ideia para entrar na história do pensamento Humano. No entanto, Anaximandro de Mileto teve mais contribuições relevantes.
Atentemos a uma tradução possível de um fragmento atribuído a Anaximandro:
“Todas as coisas têm raízes umas nas outras
e perecem umas nas outras,
segundo a necessidade.
Todas elas fazem justiça umas nas outras,
e recompensam-se da injustiça,
de acordo com a ordem do Tempo”
In Anaximandro de Mileto ou o nascimento do pensamento científico, Rovelli, p. 47.
Uma eventual interpretação deste excerto sugere que o devir contínuo do mundo não é governado pelo acaso, mas sim pela necessidade, a qual podemos interpretar como lei. Desta maneira, a forma como as leis se exprimem está “de acordo com a ordem do tempo”, facto que estabiliza o devir dos fenómenos e nos permite prevê-los. Para lá da beleza do texto, podemos ainda refletir sobre a intuição genial de como o mundo obedece a regras e leis.
Neste sentido, para interpretar o alcance da conceção de Anaximandro, proponho uma teoria Grega, que defende que o mundo é constituído por quatro elementos: terra, água, ar e fogo. O entendimento de Anaximandro não era identificar, estudar ou caracterizar cada um dos elementos, mas sim encontrar o constituinte unificador para os quatro, isto é, a lei pela qual se regem.
Esta genialidade está presente em várias revoluções científicas. Uma das mais belas e sublimes, que originou a nossa sociedade baseada na eletricidade, é a de Faraday. Em meados do século XIX, os fenómenos elétricos e magnéticos eram conhecidos e relativamente previsíveis, embora de forma separada. Após um estudo exaustivo, Faraday introduziu o conceito de campo eletromagnético: algo que preenche o espaço e se estende por todo o lado, atuando como ondas elétricas e magnéticas inseparáveis, que interagem entre si. Assim se conclui que Faraday foi imbuído do espírito de Anaximandro, tal como Newton e Einstein.
Em suma, Anaximandro não foi consequência de um acaso, mas sim de um contexto fomentador de inovação, no qual as suas potencialidades floresceram. Atualmente, uma sociedade mais aberta que receba e potencie o melhor de todos nós irá, a meu ver, proporcionar novas revoluções tal como Mileto proporcionou.
Para terminar, realço que o espírito de Anaximandro também se sente quando lemos livros de um grande escritor e desfrutamos da obra de um pintor revolucionário ou de um músico intemporal, pois, tal como na ciência, também na arte há quem descubra novas perspetivas que marcam uma época e se tornam intemporais.
Por fim, resta-me sugerir o livro “Anaximandro de Mileto ou o nascimento do pensamento científico” de Carlo Rovelli, editado por Edições 70.